Confesso que não sabia bem o que era um iphone até ouvir esse tipo de frase de efeito: “é comunista/socialista, mas usa iphone”. Só então descobri que era uma marca comercial específica de smartphone, que não é a mesma coisa que um ipod.
Descobri isso graças à wikipedia, uma enciclopédia
virtual construída por cooperação voluntária, usando um computador
fabricado por alguma empresa capitalista, mas inventando em universidades públicas, através do sistema operacional Linux,
software livre, produzido por cooperação voluntária, acessando a
internet, rede de comunicação criada no setor público militar dos
Estados Unidos, e das redes de telecomunicação via satélite, uma
invenção soviética. No dia em que fiz essa descoberta sobre smartphones e
ipods, comi três refeições de alimentos produzidos pela agropecuária,
uma invenção das comunidades tribais neolíticas. Tenho certeza que
vários produtos que utilizei hoje tem origens heterogêneas, em culturas
capitalistas, socialistas, feudais, escravistas, camponesas, nômades,
etc, originadas em uma, aperfeiçoadas em outras, e assim por diante.
É praticamente impossível mapear a origem da técnica e o processo
econômico pelo qual passaram os produtos que eu utilizo no meu
cotidiano. Pelo meu conhecimento histórico e sociológico, presumo que
algumas coisas que consumo passam, em pelo menos um elo da produção,
pela devastação ecológica e trabalho escravo ou precário. Alguns são de grandes marcas, outros de pequenos produtores, alguns de cooperativas.
O que eu nunca fui capaz de descobrir
é qual é a contradição entre ser de esquerda e usar algum produto
tecnológico. Pessoas de mentalidade conservadora/direitista pensam saber
o que é ser de esquerda e poder ensinar para quem é de esquerda o que
significa sê-lo. E o que parece se depreender de uma postura de esquerda
coerente, segundo os reacionários, é ser um eremita. Afinal, nada
melhor para a direita se toda a esquerda fosse morar em comunidades
hippies ou em Cuba. Os ricos respirariam aliviados, pois seus inimigos
não criariam problemas gravíssimos, como denunciar injustiças e
participar de mobilizações populares.
Não direi que estão completamente incorretos em algumas críticas. Não
sou extremista. É realmente “feio” alguém da esquerda anticapitalista
ter um comportamento consumista, fazendo questão de esbanjar riquezas e
acumulando coisas desnecessárias.
Muito pior que isso, no entanto, é defender abertamente e incentivar o
consumismo individualista e desenfreado como privilégio de alguns
bem-nascidos, estigmatizando quem sofre com baixos salários
ou desempregado como “vagabundos” e coisas semelhantes. É muito mais
“feio” naturalizar desigualdades extremas, patrimônios exorbitantes e
exclusão social. Porque aí não se trata apenas de um comportamento
privado “feio”. É também o comportamento público horrendo. É uma conduta
integralmente perversa.
Uma parte importante da esquerda busca uma reforma dentro dos limites
do capitalismo, para redução das desigualdades, exclusão e exploração
mais extremas. Outros tentam ir além, procurando meios de superação do
modo de produção capitalista. A questão chave é a redistribuição dos
produtos e meios do trabalho que se encontram concentrados nas mãos,
principalmente, de quem não trabalha, mas é proprietário do capital.
De uma perspectiva de esquerda, ou seja, do igualitarismo social, não
há lugar para repúdio à tecnologia, apenas as suas funções e usos numa
sociedade injusta. Não condenamos todo e qualquer uso da energia
nuclear, se denunciamos o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki como um ato
genocida. A energia nuclear tem muitos usos pacíficos. Da mesma forma
que os iphones e ipods provavelmente tem outros usos, além da ostentação
consumista.
O problema para a esquerda não é a tecnologia dos ipods e iphones, é a
falta de acesso universal à alimentação, moradia, vestuário, transporte
coletivo, educação, saúde, aposentadoria e trabalho digno. E também a
cultura e meios de comunicação. É a existência de uma ínfima minoria
riquíssima, em contraste com grandes massas relativa ou absolutamente
pobres e desamparadas.
O que impõe limites à difusão dos ipods e iphones não é a esquerda. É
o planeta. Os recursos são limitados, e a generalização de um padrão de
consumo como o dos estadunidenses (que são pouco menos de 5% da
população mundial e concentram 25% da renda, além de consumir 30% do
petróleo), exigiria quatro planetas. Aí é que há limitação legítima do
consumo: pela sustentabilidade ecológica de longo prazo. É por isso que
melhorar e expandir o transporte coletivo e ciclovias é preferível a
universalizar o casso pessoal. Em qualquer um desses casos, trata-se de
uma questão coletiva, objeto de políticas públicas, e não de escolhas
privadas.
Isso significa que o homem ou mulher de esquerda, como já disseram
muitos reacionários, deveria doar sua renda individual? Esse ato seria
indiferente. Não é raro que o esquerdista que siga esse conselho seja em
seguida acusado de demagogo… Parece que é impossível a pessoa de
esquerda ser coerente, não acham? Na verdade, a filantropia é uma
escolha privada. A opção pela esquerda é política, diz respeito a
decisões de alcance coletivo, e, primeiramente, ao modo de governar e
utilizar o Estado.
A economia capitalista certamente não funcionaria caso todos os ricos
fossem adeptos da total filantropia, e escolhessem viver com uma renda
equivalente a um salário modesto, dividindo todo o resto. Afinal, quem
trabalharia para produzir a riqueza?
A esquerda não defende a filantropia, que é uma escolha privada,
possível apenas para quem já tem muito mais do que precisa. A
filantropia se baseia uma relação de dependência entre o doador e o
beneficiário. Às vezes o filantropo tira maior benefício para si deste
ato, pois adquire prestígio e influência (e em muitos casos, consegue
esconder a sonegação de grandes somas). A esquerda promove a
solidariedade, que é a ajuda mútua entre iguais, e políticas públicas,
ativas e coativas de redistribuição de renda.
Sim, coativas. Um imposto de renda progressivo é
coação. Qualquer imposto é coercitivo – então que ao menos seja justo.
Esse imposto arrecadado deve ser direcionado para um investimento social
eficiente, que beneficie aos mais pobres (Bolsa-Família, reforma
agrária, etc) ou a todos (educação e saúde públicas, transporte
coletivo, etc).
Antes que digam que isso é um atentado à liberdade, gostaria de
lembrar que a propriedade privada é tremendamente coativa. A propriedade
privada é exclusiva: o bem é apropriado por um, que faz dele o que bem
entender, quando é excluído do usufruto de todos os outros. Grande parte
da violência policial e encarceramento é repressão aos crimes contra a
propriedade privada. Grande parte da criminalidade de rua é tentativa de
obter propriedade privada por meios ilegais. Qual liberdade
proprietária tem o miserável, que nada tem para si? A liberdade
individual do pobre é ser escravizado pela necessidade. Uma
redistribuição de riquezas desigualmente distribuídas é a maior promoção
da liberdade, pouco importando que seja realizada mediante coerção
política e jurídica.
Ser de esquerda, portanto, não é ser contra qualquer tecnologia X por
ter sido inventada numa sociedade capitalista, feudal ou escravista,
mas, pelo contrário, lutar pela socialização dos benefícios do progresso
tecnológico. E desde que (re)descobrimos a finitude dos recursos do
planeta, de um modo que não comprometa o futuro dos nossos filhos, netos
e bisnetos.
http://desmentindoreacionarios.wordpress.com/2014/01/15/a-esquerda-e-o-iphone/
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